quarta-feira, 20 de julho de 2016

O PERÍODO COMPLEMENTAR NA ESCOLA PARTICULAR: uma experiência em busca do diálogo com as práticas de educação integral.

*Esse artigo foi publicado no mês de Janeiro de 2016 na Revista Direcional Educador, edição 132. 




Sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na busca, não aprendo nem ensino.
Paulo Freire

A experiência de implementar e implantar o período complementar na Escola Nossa Senhora das Graças - Gracinha, em São Paulo, começou no ano de 2014 com uma turma de 1os e 2os anos do Ensino Fundamental I, no qual atuei como professora e com sua continuidade em 2015, como coordenadora.
A proposta desse período complementar é priorizar o brincar e o lúdico, por meio de diversas oficinas ministradas por uma professora polivalente. Inicialmente, houve apenas uma parceria no curso de inglês, oferecido às crianças duas vezes por semana.
Há um bom tempo, diversas escolas particulares oferecem o contraturno ou o período complementar, devido a uma demanda das famílias que precisam trabalhar e não têm tempo de ficar com os filhos ou que desejam que eles façam atividades diferenciadas.
A grande questão é que o contraturno escolar, muitas vezes, acontece como um tempo automatizado de cursar várias atividades extracurriculares ou da criança permanecer na escola por mais tempo sem uma proposta específica ou ainda de repetir o mesmo tipo de atividade oferecida no período regular, sem considerar os direitos e as necessidades dessas crianças.
Em uma reportagem, divulgada no You Tube, sobre educação integral1, a jornalista, editora e assistente do Centro de Referência em Educação Integral da Associação Cidade Escola Aprendiz, Juliana Sada (2014) diz que há alguns pontos estratégicos que precisam ser levados em conta: a centralidade do aluno e o diálogo dos saberes entre si. Além da ampliação dos tempos, conteúdos e espaços de aprendizagem.
Não há um roteiro a seguir, o essencial é que a proposta contemple os aspectos citados acima. Existem diferentes organizações de gestão e de propostas pedagógicas, é imprescindível conhecer as experiências de outras escolas.
O que apresento aqui não é uma receita, tão pouco tem a pretensão de ser um modelo, mas sim o relato de uma experiência que deu certo e teve um retorno positivo das crianças, das famílias e da equipe pedagógica.

O PROCESSO DE IMPLANTAR E IMPLEMENTAR A PROPOSTA
A configuração do período complementar parte da ampliação da jornada, não de um turno único, no período da manhã, com a garantia de oferecer um tempo diferenciado e de qualidade, já que a escola disponibiliza os cursos extracurriculares no período pós-aula.
Para uma primeira organização estrutural e de funcionamento, foi preciso considerar:
  • os alunos do Ensino Fundamental I estudam no período da tarde, os do Fundamental II e do Ensino Médio no período da manhã, então as crianças frequentariam e dividiriam os mesmos espaços que os “maiores”;
  • ter uma sala diferenciada e acolhedora para receber esses alunos do FI;
  • planejar horários fixos de lanche, almoço e descanso/sono;
  • contar com materiais ricos nas suas possibilidades de trabalho;
  • a opção de frequentar de 2 a 5 vezes por semana, ou seja, grupos diferentes a cada dia da semana;
  • estabelecer uma grade com o funcionamento flexível da rotina, segundo uma demanda das famílias.
Em um segundo momento foi preciso considerar:
  • a flexibilidade de horário de entrada;
  • que embora a oficina faça parte de um determinado dia da semana, pode acontecer nos outros dias;
  • os dias em que foi oferecida uma parceria com a escola de inglês apresentavam grupos mais numerosos;
  • a necessidade de oferecer uma atividade corporal ministrada por um especialista foi avaliada como importante (incluímos capoeira na rotina 2 vezes por semana);
  • a preparação de um registro (DVD) que apresentasse o que as crianças fazem no complementar;
  • uma reunião de pais no final de cada semestre;
  • um trabalho específico com a alimentação;
  • a necessidade de expor os trabalhos também do lado de fora da sala, para possibilitar a troca entre as crianças que frequentam o complementar e as que não frequentam;
  • uma aula experimental para quem gostaria de conhecer e para divulgar o trabalho desenvolvido.
E em um terceiro momento:
  • realizar saídas das crianças para locais próximos à escola;
  • integrar as crianças com os adolescentes e outros adultos;
  • convidar as famílias para participarem de atividades do complementar;
  • fazer parte da Mostra de Trabalhos, apresentando trabalhos coletivos.
Em 2015, a oferta do complementar aumentou devido a abertura de mais uma turma e consequentemente, de novos profissionais. Além do inglês 2 vezes por semana, consideramos oferecer a capoeira e a música uma vez por semana. Essas foram atividades avaliadas como um ganho para as crianças, já que garantimos tempo para brincar e trabalhar com outras linguagens. E novos desafios foram colocados: a reorganização estrutural e o alinhamento de concepção com a nova equipe. Assim, a cada ano, até a primeira turma terminar o ciclo do FI em 2017, teremos novas experiências, abertura de novas turmas e o aprimoramento da nossa prática.

A CONSTRUÇÃO DE UMA CONCEPÇÃO
Propiciar às crianças do FI mais ludicidade, tempo para brincar e um espaço planejado para instigar a curiosidade e a pesquisa é oferecer um ambiente rico nas suas oportunidades de aprendizagem com diversas linguagens.
Para promover um trabalho de qualidade, acreditamos que é importante ver a criança como um sujeito social, ativo e singular; ver a criança como capaz, potente, criativa, produtora de cultura e curiosa.
Para que a prática se torne cada vez mais próxima dessa concepção de criança, já não podemos mais ter uma postura centralizadora do professor. É preciso manter o exercício diário de um olhar livre de preconceitos, idealizações, classificações e rótulos: um olhar a partir do mundo infantil, considerando que existem crianças e infâncias.
A formação continuada do educador é a peça chave para manter a prática, a reflexão e a abertura para o novo. O professor deve se colocar como mediador no processo de aprendizagem: encorajar, alimentar, fomentar a atitude de pesquisa e ajudar a concretizar as ideias das crianças. Colocar-se como pesquisador, trocar com a equipe de trabalho, estudar e buscar se adaptar a uma nova forma de fazer e conceber, consequentemente inovando sua prática.
O período complementar tem uma proposta na qual a criança é o centro do processo e existem outras pessoas, outros espaços e outros tempos de aprendizagem. Essa nova forma de colocar-se no ambiente escolar e como o professor olha para a criança, faz com que se torne mais visível a necessidade de se dedicar ao desenvolvimento emocional, moral e da autonomia da criança. Quanto mais aberta e colaborativa é a proposta, mais conflitos aparecem e é preciso vê-los como uma situação rica de aprendizagem e desenvolvimento, uma oportunidade única no espaço coletivo. Portanto, o professor precisa cuidar de si mesmo, para que possa atuar da melhor forma possível, precisa colocar em prática para si mesmo o que ensina. O autoconhecimento e a reflexão se fazem imprescindíveis.
O planejamento semanal interliga os conteúdos curriculares, as escolhas do educador e o protagonismo infantil. A partir da escuta e da observação, validamos as ideias das crianças e inserimos no planejamento, tornando a aprendizagem significativa para todos os envolvidos. Nessa forma de planejar, tanto o educador quanto a criança, assumem uma postura mais investigativa: pesquisam e aprendem juntos. Essa prática colabora muito para formação do educador e coloca-o em movimento na situação de aprendizagem.
Quando a criança é protagonista de suas aprendizagens, ela se envolve mais e cria significados que a fazem tornar alguns momentos inesquecíveis, de muito prazer e realização. Por exemplo, ao construir um brinquedo com autonomia, com o professor apostando na sua capacidade, a criança brinca mais com aquele brinquedo porque tem um forte significado. E acontece o contrário quando o professor faz o trabalho pela criança: ela brinca poucas vezes e depois não quer mais, porque não houve vínculo com sua aprendizagem.

A observação e o registro dos processos permitem recuperar, avaliar e replanejar ações e planejar situações que apoiem o processo de ensino-aprendizagem. O processo de documentação envolve perceber os aspectos não observados antes, permite conhecer melhor a história de cada criança e do grupo, permite olhar mais profundamente a pesquisa das crianças e a satisfação perante as propostas, alimentando o planejamento com situações inesperadas.
Essa prática faz parte das ferramentas do professor para promover uma educação de qualidade, sendo fundamental para reunir informações sobre as ações realizadas com as crianças, registrando as singularidades e a evolução de cada uma. Se o professor tiver sempre próximo um bloquinho de papel, uma caneta e uma câmera fotográfica ou mesmo celular, e mantiver uma postura de recolhimento, consegue clicar momentos inusitados e incríveis que acontecem diariamente, aprendendo a observar e valorizar a potência da criança.
A interação entre idades traz muitos benefícios às crianças: é a partir dessa vivência que ocorre a troca de experiências e a construção de conhecimentos entre os mais experientes e os menos experientes. Tudo isso propicia o desenvolvimento de diversos valores e descentraliza a figura do professor, as crianças aprendem e ensinam entre elas. O trabalho em grupo também faz parte dessa interação e traz a sensação de pertencimento, de respeito entre as diferentes faixas etárias, é um momento de diversão, descoberta de novas parcerias e potencialidades de si mesmo e dos outros.
A estética das salas e dos demais espaços funcionam como um terceiro educador. A ambientação e a organização podem criar espaços desafiadores, de investigação e curiosidade, em sintonia com os murais, demonstrando a potência e capacidade das crianças: mobiliário baixo, materiais acessíveis e disponíveis, mural com registros das propostas e projetos, possibilidades de transformação do espaço para criar, recriar e dar significados a cada intenção, seja na sala ou no parque. O espaço pode provocar sensações distintas de prazer à desprazer, cabe ao professor ensinar a importância de habitar os espaços, dar sentido a eles e fazer com que as crianças se sintam parte de algo maior, afinal os espaços são lugares ativos de relação, interação e movimentação.
As oficinas trabalham com as linguagens da arte, o brincar e a integração das áreas do conhecimento, visando o desenvolvimento expressivo junto a outras linguagens como língua portuguesa, matemática, ciências etc. Tornando as oficinas mais interessantes, despertando a curiosidade, estimulando a criatividade, a imaginação e a sensibilidade por meio de diferentes materiais, propostas e referências.
O brincar é o eixo central da proposta. As crianças têm tempo para brincar livremente, têm uma variedade de objetos do cotidiano, constroem seus próprios brinquedos e jogos potencializando toda sua imaginação e criatividade; a brincadeira e a ludicidade estão presentes nos diferentes momentos da rotina. Valorizamos o brincar porque é uma forma de expressão e é por meio da brincadeira que a criança se desenvolve integralmente (habilidades cognitivas, sociais, afetivas e motoras), favorecendo a aprendizagem.
Trazer a cultura brasileira para a prática cotidiana também foi muito positivo, o imaginário das lendas e mitos, as danças, as receitas, as brincadeiras encantam, envolvem e possibilitam a reflexão sobre a diversidade cultural do nosso país. Aproximá-los da cultura popular brasileira provocou intensa curiosidade e muita troca com os conhecimentos prévios do grupo, além de outros saberes em diálogo com o trabalho já realizado no período regular.
Assim, a partir do cotidiano, de trocas, reflexões e experimentações, essa prática foi se construindo e ganhando forma.

AS POSSIBILIDADES DE DIÁLOGO COM A EDUCAÇÃO INTEGRAL
Parece-me fascinante a ideia de reformular o período complementar da escola particular e tentar uma aproximação com a concepção de Educação Integral, com o objetivo de se obter uma proposta pedagógica de qualidade, com embasamento teórico e práticas inovadoras, colaborando com o desenvolvimento integral da criança.
Para começar a dar forma ao documento curricular dessa proposta, planejei um tempo de estudo na minha rotina de trabalho, além de encontros com a orientação para tomada de decisões e troca com as professoras em reuniões individuais e de equipe. O desejo é que todos possam participar dessa construção.
Os registros da prática em 2014 tiveram grande importância nesse processo de contar sobre essa experiência, pois assim pude retomar, avaliar e compartilhar todo o caminho percorrido com outros educadores.
A concepção do integral é formada pela proposta pedagógica da escola e por outras concepções2 que inspiram e conectam a possibilidade de diálogo com a concepção de Educação Integral considerando:
  • a centralidade no aluno (protagonismo infantil);
  • novos tempos sem uma rotina compartimentada, novos espaços para explorar as possibilidades do ambiente escolar, mesmo os mais improváveis;
  • aprender com o entorno (territórios educativos);
  • aprender com o outro (seja outra criança, adolescente, adulto, dentro ou fora da escola);
  • possibilidade de se expressar com diversas linguagens e integrá-las;
  • aprender com novas possibilidades (tempo de qualidade, não é mais tempo da mesma coisa).
Esses são os primeiros e fundamentais passos em busca de uma prática inovadora, que deseja fortalecer a centralidade na criança, para que ela possa expressar toda sua imaginação e potencialidade, para que o educador possa se colocar e se ver como mediador, acreditando que esse é o caminho. De fato, é possível transformar a educação e dar voz às crianças.
Em uma reportagem, divulgada no You Tube, sobre educação integral3, o cientista social e pesquisador do CENPEC4, Alexandre Isaac (2014) comenta que o currículo é sempre uma escolha, ele revela a concepção de mundo e sociedade, do que a escola quer que as crianças sejam no futuro
Portanto, o currículo revela o que queremos para essas crianças no futuro, então essas escolhas são muito importantes e espelham o que acreditamos sobre educação.
O período complementar precisa de um trabalho sério, é um espaço que merece atenção, investimento e deve ser valorizado por todos. Se a prática vem de uma nova alternativa para a educação, a possibilidade de contagiar o ensino regular e motivá-lo a se transformar é muito desejável, afinal a própria concepção diz que a ideia é que a escola funcione em tempo integral e não com essa quebra, então quanto mais o regular dialogar com a concepção, melhor.
Essa construção inicial da concepção e do diálogo com a Educação Integral, serve de suporte ao trabalho desenvolvido, de fonte de consulta e de referência para elaboração e reelaboração da prática de acordo com as mudanças que a escola pode passar e as novas necessidades dos alunos. E pode receber novas contribuições, além de revisões a cada nova experiência.

A CONSTRUÇÃO DA EQUIPE
Trabalhar com a formação de equipe é uma tarefa desafiadora. Para se constituir um grupo de trabalho cooperativo é preciso que os envolvidos estejam comprometidos com a concepção. Que os envolvidos se responsabilizem mutuamente pelos erros e acertos, que sejam conscientes das suas capacidades e limitações, e da importância da troca de conhecimentos, considerando que as pessoas possuem habilidades complementares e cada um tem sua forma de desenvolver a prática, embora precise de coerência com os valores institucionais.
É necessário existir um momento no qual se possa apresentar o caminho profissional de cada membro da equipe, além de deixar claro os papéis e as funções de cada um.
Fazer parte de um grupo é possibilitar que todos possam, respeitosamente, expressar seus pontos de vista; que tenham tempo para se adaptar e expor seus posicionamentos e concepções. A partir disso, é possível delimitar objetivos comuns a equipe, para que todos estejam alinhados com a proposta pedagógica; fazendo sugestões e um feedback sobre o trabalho desenvolvido, verificando a flexibilidade e abertura de cada um para se rever ou aceitar as intervenções. É importante reconhecer as conquistas e os aspectos que precisam ser melhorados, comunicando os objetivos e compartilhando as estratégias.
A sensibilidade no trato com as pessoas, a vontade de compartilhar e aprender, aliada a confiança são fatores decisivos para uma boa constituição de grupo. As decisões que podem ser tomadas em grupo, também contribuem para essa constituição e nada melhor do que flexibilidade para chegar a um lugar que agrade a todos os envolvidos. Quando cada um do grupo tem essa oportunidade/disponibilidade de ouvir o outro e colocar suas ideias, soluções incríveis são encontradas para um problema que parecia não ter solução. É fundamental refletir sobre as convergências e divergências em relação a prática e a teoria, muitas vezes, as mudanças e a inovação causam insegurança gerando conflitos, exigindo reavaliar o percurso. É importante registrar o caminho percorrido pela equipe e por cada envolvido, para depois possibilitar a avaliação de como foi a construção de equipe.
A satisfação de realizar o próprio trabalho deve ser baseada no orgulho de fazer parte da equipe dessa escola, na realização do seu próprio trabalho, na alegria e afetividade das crianças, no perceber a evolução de todos e de si mesmo, na dedicação da sua formação, na confiança da parceria e no retorno, que acontece automaticamente, de toda comunidade escolar (crianças, pais e educadores) ao valorizar o trabalho desenvolvido.
Termino esse artigo com o desejo de que todas as escolas busquem inovação e possibilitem à criança o espaço e o tempo para brincar, escolher, fazer, descansar, ler, conversar, contemplar... Que os envolvidos na prática educativa se dediquem a enxergar a potência da criança, se contagiem e abram espaço para a riqueza do mundo infantil.


1 Fonte: Roda de Conversa: Os Desafios da Escola em Tempo Integral no Brasil - 1/3 (11:55 min.). Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=274TQgSkDN4 >. Acesso em 20 jul. 2015.
2 Outras concepções que embasam essa prática são a Abordagem de Reggio Emilia, as inovações em educação, a artista plástica Anna Marie Holm, a pesquisadora da cultura infantil Renata Meireles e outras pedagogias, além da própria concepção de Educação Integral.
3 Fonte: Roda de Conversa: Os Desafios da Escola em Tempo Integral no Brasil - 1/3 (05:16 min.). Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=274TQgSkDN4 >. Acesso em 20 jul. 2015.

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