*Esse artigo foi publicado no mês de Janeiro de 2016 na Revista Direcional Educador, edição 132.
Sem
a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na busca,
não aprendo nem ensino.
Paulo Freire
A experiência de implementar e implantar o
período complementar na Escola Nossa Senhora das Graças - Gracinha,
em São Paulo, começou no ano de 2014 com uma turma de 1os e 2os
anos do Ensino Fundamental I, no qual atuei como professora e com sua
continuidade em 2015, como coordenadora.
A proposta desse período complementar é
priorizar o brincar e o lúdico, por meio de diversas oficinas
ministradas por uma professora polivalente. Inicialmente, houve
apenas uma parceria no curso de inglês, oferecido às crianças duas
vezes por semana.
Há um bom tempo, diversas escolas
particulares oferecem o contraturno ou o período complementar,
devido a uma demanda das famílias que precisam trabalhar e não têm
tempo de ficar com os filhos ou que desejam que eles façam
atividades diferenciadas.
A grande questão é que o contraturno
escolar, muitas vezes, acontece como um tempo automatizado de cursar
várias atividades extracurriculares ou da criança permanecer na
escola por mais tempo sem uma proposta específica ou ainda de
repetir o mesmo tipo de atividade oferecida no período regular, sem
considerar os direitos e as necessidades dessas crianças.
Em uma reportagem, divulgada no You Tube,
sobre educação integral,
a jornalista, editora e assistente do Centro de Referência em
Educação Integral da Associação Cidade Escola Aprendiz, Juliana
Sada (2014) diz que há alguns pontos estratégicos que precisam ser
levados em conta: a centralidade do aluno e o diálogo dos saberes
entre si. Além da ampliação dos tempos, conteúdos e espaços de
aprendizagem.
Não há um roteiro a seguir, o essencial
é que a proposta contemple os aspectos citados acima. Existem
diferentes organizações de gestão e de propostas pedagógicas, é
imprescindível conhecer as experiências de outras escolas.
O que apresento aqui não é uma receita,
tão pouco tem a pretensão de ser um modelo, mas sim o relato de uma
experiência que deu certo e teve um retorno positivo das crianças,
das famílias e da equipe pedagógica.
O
PROCESSO DE IMPLANTAR E IMPLEMENTAR A PROPOSTA
A configuração do período complementar
parte da ampliação da jornada, não de um turno único, no período
da manhã, com a garantia de oferecer um tempo diferenciado e de
qualidade, já que a escola disponibiliza os cursos extracurriculares
no período pós-aula.
Para uma primeira organização estrutural
e de funcionamento, foi preciso considerar:
-
os alunos do Ensino Fundamental I estudam
no período da tarde, os do Fundamental II e do Ensino Médio no
período da manhã, então as crianças frequentariam e dividiriam
os mesmos espaços que os “maiores”;
-
ter uma sala diferenciada e acolhedora
para receber esses alunos do FI;
-
planejar horários fixos de lanche, almoço
e descanso/sono;
-
contar com materiais ricos nas suas
possibilidades de trabalho;
-
a opção de frequentar de 2 a 5 vezes por
semana, ou seja, grupos diferentes a cada dia da semana;
-
estabelecer uma grade com o funcionamento
flexível da rotina, segundo uma demanda das famílias.
Em um segundo momento foi preciso
considerar:
-
a flexibilidade de horário de entrada;
-
que embora a oficina faça parte de um
determinado dia da semana, pode acontecer nos outros dias;
-
os dias em que foi oferecida uma parceria
com a escola de inglês apresentavam grupos mais numerosos;
-
a necessidade de oferecer uma atividade
corporal ministrada por um especialista foi avaliada como importante
(incluímos capoeira na rotina 2 vezes por semana);
-
a preparação de um registro (DVD) que
apresentasse o que as crianças fazem no complementar;
-
uma reunião de pais no final de cada
semestre;
-
um trabalho específico com a alimentação;
-
a necessidade de expor os trabalhos também
do lado de fora da sala, para possibilitar a troca entre as crianças
que frequentam o complementar e as que não frequentam;
-
uma aula experimental para quem gostaria
de conhecer e para divulgar o trabalho desenvolvido.
E em um terceiro momento:
-
realizar saídas das crianças para locais
próximos à escola;
-
integrar as crianças com os adolescentes
e outros adultos;
-
convidar as famílias para participarem de
atividades do complementar;
-
fazer parte da Mostra de Trabalhos,
apresentando trabalhos coletivos.
Em 2015, a oferta do complementar aumentou
devido a abertura de mais uma turma e consequentemente, de novos
profissionais. Além do inglês 2 vezes por semana, consideramos
oferecer a capoeira e a música uma vez por semana. Essas foram
atividades avaliadas como um ganho para as crianças, já que
garantimos tempo para brincar e trabalhar com outras linguagens. E
novos desafios foram colocados: a reorganização estrutural e o
alinhamento de concepção com a nova equipe. Assim, a cada ano, até
a primeira turma terminar o ciclo do FI em 2017, teremos novas
experiências, abertura de novas turmas e o aprimoramento da nossa
prática.
A
CONSTRUÇÃO DE UMA CONCEPÇÃO
Propiciar às crianças do FI mais
ludicidade, tempo para brincar e um espaço planejado para instigar a
curiosidade e a pesquisa é oferecer um ambiente rico nas suas
oportunidades de aprendizagem com diversas linguagens.
Para promover um trabalho de qualidade,
acreditamos que é importante ver a criança como um sujeito social,
ativo e singular; ver a criança como capaz, potente, criativa,
produtora de cultura e curiosa.
Para que a prática se torne cada vez mais
próxima dessa concepção de criança, já não podemos mais ter uma
postura centralizadora do professor. É preciso manter o exercício
diário de um olhar livre de preconceitos, idealizações,
classificações e rótulos: um olhar a partir do mundo infantil,
considerando que existem crianças e infâncias.
A formação continuada do educador é a
peça chave para manter a prática, a reflexão e a abertura para o
novo. O professor deve se colocar como mediador no processo de
aprendizagem: encorajar, alimentar, fomentar a atitude de pesquisa e
ajudar a concretizar as ideias das crianças. Colocar-se como
pesquisador, trocar com a equipe de trabalho, estudar e buscar se
adaptar a uma nova forma de fazer e conceber, consequentemente
inovando sua prática.
O período complementar tem uma proposta na
qual a criança é o centro do processo e existem outras pessoas,
outros espaços e outros tempos de aprendizagem. Essa nova forma de
colocar-se no ambiente escolar e como o professor olha para a
criança, faz com que se torne mais visível a necessidade de se
dedicar ao desenvolvimento emocional, moral e da autonomia da
criança. Quanto mais aberta e colaborativa é a proposta, mais
conflitos aparecem e é preciso vê-los como uma situação rica de
aprendizagem e desenvolvimento, uma oportunidade única no espaço
coletivo. Portanto, o professor precisa cuidar de si mesmo, para que
possa atuar da melhor forma possível, precisa colocar em prática
para si mesmo o que ensina. O autoconhecimento e a reflexão se fazem
imprescindíveis.
O planejamento semanal interliga os
conteúdos curriculares, as escolhas do educador e o protagonismo
infantil. A partir da escuta e da observação, validamos as ideias
das crianças e inserimos no planejamento, tornando a aprendizagem
significativa para todos os envolvidos. Nessa forma de planejar,
tanto o educador quanto a criança, assumem uma postura mais
investigativa: pesquisam e aprendem juntos. Essa prática colabora
muito para formação do educador e coloca-o em movimento na situação
de aprendizagem.
Quando a criança é protagonista de suas
aprendizagens, ela se envolve mais e cria significados que a fazem
tornar alguns momentos inesquecíveis, de muito prazer e realização.
Por exemplo, ao construir um brinquedo com autonomia, com o professor
apostando na sua capacidade, a criança brinca mais com aquele
brinquedo porque tem um forte significado. E acontece o contrário
quando o professor faz o trabalho pela criança: ela brinca poucas
vezes e depois não quer mais, porque não houve vínculo com sua
aprendizagem.
A observação e o registro dos processos
permitem recuperar, avaliar e replanejar ações e planejar situações
que apoiem o processo de ensino-aprendizagem. O processo de
documentação envolve perceber os aspectos não observados antes,
permite conhecer melhor a história de cada criança e do grupo,
permite olhar mais profundamente a pesquisa das crianças e a
satisfação perante as propostas, alimentando o planejamento com
situações inesperadas.
Essa prática faz parte das ferramentas do
professor para promover uma educação de qualidade, sendo
fundamental para reunir informações sobre as ações realizadas com
as crianças, registrando as singularidades e a evolução de cada
uma. Se o professor tiver sempre próximo um bloquinho de papel, uma
caneta e uma câmera fotográfica ou mesmo celular, e mantiver uma
postura de recolhimento, consegue clicar momentos inusitados e
incríveis que acontecem diariamente, aprendendo a observar e
valorizar a potência da criança.
A interação entre idades traz muitos
benefícios às crianças: é a partir dessa vivência que ocorre a
troca de experiências e a construção de conhecimentos entre os
mais experientes e os menos experientes. Tudo isso propicia o
desenvolvimento de diversos valores e descentraliza a figura do
professor, as crianças aprendem e ensinam entre elas. O trabalho em
grupo também faz parte dessa interação e traz a sensação de
pertencimento, de respeito entre as diferentes faixas etárias, é um
momento de diversão, descoberta de novas parcerias e potencialidades
de si mesmo e dos outros.
A estética das salas e dos demais espaços
funcionam como um terceiro educador. A ambientação e a organização
podem criar espaços desafiadores, de investigação e curiosidade,
em sintonia com os murais, demonstrando a potência e capacidade das
crianças: mobiliário baixo, materiais acessíveis e disponíveis,
mural com registros das propostas e projetos, possibilidades de
transformação do espaço para criar, recriar e dar significados a
cada intenção, seja na sala ou no parque. O espaço pode provocar
sensações distintas de prazer à desprazer, cabe ao professor
ensinar a importância de habitar os espaços, dar sentido a eles e
fazer com que as crianças se sintam parte de algo maior, afinal os
espaços são lugares ativos de relação, interação e
movimentação.
As oficinas trabalham com as linguagens da
arte, o brincar e a integração das áreas do conhecimento, visando
o desenvolvimento expressivo junto a outras linguagens como língua
portuguesa, matemática, ciências etc. Tornando as oficinas mais
interessantes, despertando a curiosidade, estimulando a criatividade,
a imaginação e a sensibilidade por meio de diferentes materiais,
propostas e referências.
O brincar é o eixo central da proposta. As
crianças têm tempo para brincar livremente, têm uma variedade de
objetos do cotidiano, constroem seus próprios brinquedos e jogos
potencializando toda sua imaginação e criatividade; a brincadeira e
a ludicidade estão presentes nos diferentes momentos da rotina.
Valorizamos o brincar porque é uma forma de expressão e é por meio
da brincadeira que a criança se desenvolve integralmente
(habilidades cognitivas, sociais, afetivas e motoras), favorecendo a
aprendizagem.
Trazer a cultura brasileira para a prática
cotidiana também foi muito positivo, o imaginário das lendas e
mitos, as danças, as receitas, as brincadeiras encantam, envolvem e
possibilitam a reflexão sobre a diversidade
cultural do nosso país.
Aproximá-los da cultura popular
brasileira provocou intensa curiosidade e muita troca com os
conhecimentos prévios do grupo, além de outros saberes em diálogo
com o trabalho já realizado no período regular.
Assim, a partir do cotidiano, de trocas,
reflexões e experimentações, essa prática foi se construindo e
ganhando forma.
AS
POSSIBILIDADES DE DIÁLOGO COM A EDUCAÇÃO INTEGRAL
Parece-me fascinante a ideia de reformular
o período complementar da escola particular e tentar uma aproximação
com a concepção de Educação Integral, com o objetivo de se obter
uma proposta pedagógica de qualidade, com embasamento teórico e
práticas inovadoras, colaborando com o desenvolvimento integral da
criança.
Para começar a dar forma ao documento
curricular dessa proposta, planejei um tempo de estudo na minha
rotina de trabalho, além de encontros com a orientação para tomada
de decisões e troca com as professoras em reuniões individuais e de
equipe. O desejo é que todos possam participar dessa construção.
Os registros da prática em 2014 tiveram
grande importância nesse processo de contar sobre essa experiência,
pois assim pude retomar, avaliar e compartilhar todo o caminho
percorrido com outros educadores.
A concepção do integral é formada pela
proposta pedagógica da escola e por outras concepções
que inspiram e conectam a possibilidade de diálogo com a concepção
de Educação Integral considerando:
-
a centralidade no aluno (protagonismo
infantil);
-
novos tempos sem uma rotina
compartimentada, novos espaços para explorar as possibilidades do
ambiente escolar, mesmo os mais improváveis;
-
aprender com o entorno (territórios
educativos);
-
aprender com o outro (seja outra criança,
adolescente, adulto, dentro ou fora da escola);
-
possibilidade de se expressar com diversas
linguagens e integrá-las;
-
aprender com novas possibilidades (tempo
de qualidade, não é mais tempo da mesma coisa).
Esses são os primeiros e fundamentais
passos em busca de uma prática inovadora, que deseja fortalecer a
centralidade na criança, para que ela possa expressar toda sua
imaginação e potencialidade, para que o educador possa se colocar e
se ver como mediador, acreditando que esse é o caminho. De fato, é
possível transformar a educação e dar voz às crianças.
Em uma reportagem, divulgada no You Tube,
sobre educação integral,
o cientista social e pesquisador do CENPEC,
Alexandre Isaac (2014) comenta que o currículo é sempre uma
escolha, ele revela a concepção de mundo e sociedade, do que a
escola quer que as crianças sejam no futuro
Portanto, o currículo revela o que
queremos para essas crianças no futuro, então essas escolhas são
muito importantes e espelham o que acreditamos sobre educação.
O período complementar precisa de um
trabalho sério, é um espaço que merece atenção, investimento e
deve ser valorizado por todos. Se a prática vem de uma nova
alternativa para a educação, a possibilidade de contagiar o ensino
regular e motivá-lo a se transformar é muito desejável, afinal a
própria concepção diz que a ideia é que a escola funcione em
tempo integral e não com essa quebra, então quanto mais o regular
dialogar com a concepção, melhor.
Essa construção inicial da concepção e
do diálogo com a Educação Integral, serve de suporte ao trabalho
desenvolvido, de fonte de consulta e de referência para elaboração
e reelaboração da prática de acordo com as mudanças que a escola
pode passar e as novas necessidades dos alunos. E pode receber novas
contribuições, além de revisões a cada nova experiência.
A
CONSTRUÇÃO DA EQUIPE
Trabalhar com a formação de equipe é uma
tarefa desafiadora. Para se constituir um grupo de trabalho
cooperativo é preciso que os envolvidos estejam comprometidos com a
concepção. Que os envolvidos se responsabilizem mutuamente pelos
erros e acertos, que sejam conscientes das suas capacidades e
limitações, e da importância da troca de conhecimentos,
considerando que as pessoas possuem habilidades complementares e cada
um tem sua forma de desenvolver a prática, embora precise de
coerência com os valores institucionais.
É necessário existir um momento no qual
se possa apresentar o caminho profissional de cada membro da equipe,
além de deixar claro os papéis e as funções de cada um.
Fazer parte de um grupo é possibilitar que
todos possam, respeitosamente, expressar seus pontos de vista; que
tenham tempo para se adaptar e expor seus posicionamentos e
concepções. A partir disso, é possível delimitar objetivos comuns
a equipe, para que todos estejam alinhados com a proposta pedagógica;
fazendo sugestões e um feedback sobre o trabalho desenvolvido,
verificando a flexibilidade e abertura de cada um para se rever ou
aceitar as intervenções. É importante reconhecer as conquistas e
os aspectos que precisam ser melhorados, comunicando os objetivos e
compartilhando as estratégias.
A sensibilidade no trato com as pessoas, a
vontade de compartilhar e aprender, aliada a confiança são fatores
decisivos para uma boa constituição de grupo. As decisões que
podem ser tomadas em grupo, também contribuem para essa constituição
e nada melhor do que flexibilidade para chegar a um lugar que agrade
a todos os envolvidos. Quando cada um do grupo tem essa
oportunidade/disponibilidade de ouvir o outro e colocar suas ideias,
soluções incríveis são encontradas para um problema que parecia
não ter solução. É fundamental refletir sobre as convergências e
divergências em relação a prática e a teoria, muitas vezes, as
mudanças e a inovação causam insegurança gerando conflitos,
exigindo reavaliar o percurso. É importante registrar o caminho
percorrido pela equipe e por cada envolvido, para depois possibilitar
a avaliação de como foi a construção de equipe.
A satisfação de realizar o próprio
trabalho deve ser baseada no orgulho de fazer parte da equipe dessa
escola, na realização do seu próprio trabalho, na alegria e
afetividade das crianças, no perceber a evolução de todos e de si
mesmo, na dedicação da sua formação, na confiança da parceria e
no retorno, que acontece automaticamente, de toda comunidade escolar
(crianças, pais e educadores) ao valorizar o trabalho desenvolvido.
Termino esse artigo com o desejo de que
todas as escolas busquem inovação e possibilitem à criança o
espaço e
o tempo para
brincar, escolher, fazer, descansar, ler, conversar, contemplar...
Que os envolvidos na prática educativa se dediquem a enxergar a
potência da criança, se contagiem e abram espaço para a riqueza do
mundo infantil.